quinta-feira, outubro 17, 2013

funcionários públicos: finalmente pobres e finalmente poucos.

O ataque, enraizado no ódio, aos funcionários públicos (FP) não são, como se sabe, uma característica exclusiva deste governo. No entanto, foi com o executivo de Pedro Passos Coelho que esse ódio e esse ataque eclodiram com uma violência injustificada num regime democrático, tendo sido assumidos como fazendo parte de um programa ideológico que se alicerça numa só palavra: austeridade. Toda a gente já percebeu que o programa de assistência financeira a que estamos submetidos – curiosa assistência, porquanto se trata de assistir um doente tornando-o quase moribundo – assente no dogma da inevitabilidade da austeridade, não implica somente uma hipoteca da nossa soberania, implica paralelamente uma narrativa moral de que só temos aquilo que merecemos e, consequentemente, a inevitabilidade de um empobrecimento generalizado da população, sobretudo das classes média e baixa da nossa sociedade. Sendo que os funcionários públicos engrossam, na sua quase totalidade, as nossas classes média e baixa, no final do estafado programa de assistência financeira a sigla FP deve ser lida em dois sentidos em simultâneo, a saber: finalmente pobres e finalmente poucos. Estaremos então perante a concretização do objectivo ideológico deste governo: um estado mínimo e anémico, fortemente policiado, à mercê da rapina e do açaime do capitalismo desenfreado que ditará as leis que mais convêm à sua insaciável avidez. E assim regrediremos umas décadas até um tempo de que só valeria a pena lembrar para que não nos esquecêssemos do longo e árduo caminho para a democracia que fizemos como povo.   

domingo, maio 27, 2012

Du temps perdu au temps retrouvé com Marcel Proust

Comecei a ler Em busca do tempo perdido. Para ser mais preciso, retomei a leitura do primeiro volume desta obra maior de Marcel Proust, Do lado de Swann, que abandonei há meia dúzia de anos quando ainda não tinha atingido a centésima página. Lembro-me então de ter pensado que, por se tratar de uma obra longa – mais de três mil páginas – a necessitar de ruminação lenta, o melhor seria guardá-la para o Verão, estação mais propícia a empreendimentos desta natureza, que exigem fôlego de maratonista. Passou o Verão e outros, ciclicamente, passou-se o tempo, e nunca mais lhe peguei. Volta e meia deparava-me com a sua lombada aprumada na estante reservada aos clássicos que ainda um dia haveria de ler, ponderando distraidamente a hipótese de cumprir esse desígnio, mas logo a enormidade da empreitada me fazia abandoná-la, adiando sine die a tarefa que adivinhava hercúlea.             
Foi o facto de ter assistido, na biblioteca do Liceu Camões, há dias, a uma aula aberta de Clássicos da Literatura, da iniciativa da professora Cristina Duarte, subordinada ao tema À la recherche du temps perdu, para a qual convidou Pedro Tamen, seu tradutor, foi esse acontecimento que me levou a retirar de novo o livro da prateleira, a abri-lo na primeira página, depois respirar fundo, e ler “Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes,…”, continuando página após página até os olhos me pedirem repouso.
O poeta falou durante quase sessenta minutos de Marcel Proust. Falou da sua vida e de alguns detalhes significativos da tradução dessa obra, que lhe consumiu três anos de uma lenta e exaltante agonia, ao ponto de, confidenciou, chegar a partilhar com as personagens confidências e inquietações que nem com os familiares partilhava. Revelou também os tormentos penados em busca da palavra exacta, as insónias que lhe tomavam conta das noites e os sonhos povoados por essas personas que entram e saem do romance sem se despedirem, voltando a reentrar um milhar ou mais de páginas adiante, sonhos que muitas vezes o conduziam à solução dos problemas prosaicos que a tradução honesta sempre coloca.     
Falou sempre com voz cadenciada, respeitando os ritmos de uma língua que aprendeu a manusear com mestria única no demorado ofício de traduzir obras alheias ou de verter em versos vozes que se transfiguram em poemas. Duas coisas disse que os ouvintes retiveram mais do quaisquer outras, pelo menos a julgar pelo que depois se comentou na sua ausência: a primeira, óbvia – que o tempo é o tema do romance; a segunda, que a leitura de uma obra como À la recherche du temps perdu transforma de tal modo o nosso ethos pessoal, que depois de se a ler, não se é o mesmo.
No final da palestra, aos aplausos oferecidos seguiram-se as perguntas. Timidamente uns, mais afoitos outros, alguns alunos interrogaram-no. Quiseram saber se o Marcel personagem se identifica com o Marcel autor, se a narrada dependência materna revela a dependência real. Perguntaram coisas do estilo, da técnica narrativa. Percebia-se que tinham preparado bem a lição. O poeta esclareceu quanto pode, solícito e benevolente. E eu então lembrei-me que seria oportuno questioná-lo acerca do Proust leitor. Sublinhei que, em se tratando de um romance pensado e escrito numa época que viu aparecer Einstein e a sua interpretação da relatividade espácio-temporal; que viu serem publicados livros cuja temática do tempo surgia explicitada nos seus títulos, designadamente de filósofos como Henri Bergson – Essais sur les données immédiates de la conscience (1889) – e Edmund Husserl – A consciência íntima do tempo (1905); que viu serem dados à estampa os romances de Virgínia Woolf e de James Joyce, romancistas de certo modo prisioneiros de uma estética narrativa da corrente de consciência; enfim, se as leituras de Proust não poderiam de algum modo elucidar-nos sobre eventuais influências que possa ter sofrido a sua construção romanesca.    
Com a humildade dos homens verdadeiramente sábios afirmou que ignorava quase tudo dessa dimensão do Proust leitor, que suspeitava contudo que teria sido um leitor atento do filósofo francês, mas que sim, que o início do séc. XX marcou a fase mais empolgante da modernidade, a qual tem na consciência do tempo um dos seus leitmotivs principais, etc. 
Na minha vida de leitor e não só, como na de muitos outros, creio, é uma mistura de acaso e de necessidade que determina os livros que se leem, de fio-a-pavio uns, aos solavancos outros, ou os livros que se abandonam como cães sarnosos à beira da estrada. Neste caso, foi um acaso feliz, caldeado com a consciência infeliz de uma necessidade há muito tempo adiada, a que me haveria de reconduzir du temps perdu au temps retrouvé com Marcel Proust.

Publicado originalmente em http://jerusalem-ljj.blogspot.pt/

domingo, maio 20, 2012

Da fenomenologia da crise ou o ócio como oportunidade de… exclusão social

A palavra crise entrou, definitivamente, do léxico corrente. Toda a gente fala da crise … almoça crise, janta crise e dorme com a crise. Tornou-se uma inevitabilidade. Muitas são as evidências disso, umas mais óbvias que outras.
           Duas notícias recentes evidenciam o modo como, nestes tempos, o fenómeno da crise é vivido pelos portugueses. Sobremaneira importa realçar o sentido, necessariamente diverso, que os seus diferentes actores lhe conferem. Para isso basta cruzar as duas notícias, cada qual a apontar para sectores opostos da soberania democrática e retirar desse cruzamento as justas ilações. Avancemos para a primeira.   
Pedro Passos Coelho, o representante máximo da soberania política logo após o Presidente da República, lançou recentemente um desafio aos desempregados deste país: encarem a crise como uma «oportunidade para mudar de vida». Para além do mal-estar que tal afirmação provocou no seio da oposição, que logo aproveitou para dela retirar os dividendos políticos possíveis, ela atingiu em cheio a dignidade pessoal dos milhares de pessoas (há quem garanta que já ultrapassam o milhão) que engrossam já as fileiras dos verdadeiros excluídos da sociedade. Pode o primeiro-ministro apregoar que falar verdade aos portugueses é a sua verdadeira missão como político, pretendendo com isso escudar-se na imagem de um José Sócrates rotulado de Pinóquio e de campeão das “inverdades”, das trapalhadas e das promessas não cumpridas. Com o tempo de nada lhe valerá. O kairós – o sentido da oportunidade – ensinaram-no os sofistas como Górgias, é a alma de um político. A inoportunidade de Pedro Passos Coelho foi, neste caso, gritante, como aliás em outras circunstâncias similares em que não só se mostrou insensível perante o drama daqueles para quem a situação de desempregados lhes devolve o significado de párias e de inúteis (recorde-se o episódio ainda recente em que aconselhou os jovem a emigrar) como demonstrou que não tem soluções para responder aos desafios mais prementes da actual política nacional. Incinerando, deste modo, a alma de quase um milhão de compatriotas, a acreditar nos números oficiais do desemprego, parece condenado a perder a sua.
Como interpretar as palavras do primeiro-ministro? Que sentido político retirar delas? Independentemente da inegável afronta que elas constituem para os visados, associar desemprego forçado com oportunidade apenas pode significar uma coisa: a existência de uma leitura ideológica – claramente assumida e patente na reiteração do dito, por parte do primeiro-ministro – do infortúnio que constitui a situação de desemprego. A ideologia ultraliberal interpreta o desemprego como uma oportunidade para o desempregado, uma oportunidade para este mudar de vida. Que cenário vislumbra ele com a concretização desta mudança? Tornar-se competitivo, isto é, tornar-se empreendedor, fazendo uso do seu engenho ou da sua capacidade empresarial e montar um negócio, criando postos de trabalho, ou então aceitar salários ao nível dos praticados em países como a China ou a Índia. Numa frase: sucesso ou miséria. De qualquer modo, a permanência na situação de desemprego assume, para a ideologia neoliberal, a ideia de um fracasso pessoal de que o único culpado é o desempregado. É por sua exclusiva responsabilidade que a mudança de vida não se concretiza. Quanto ao Estado, este não deve interferir em questões que apenas dizem respeito aos mercados e aos indivíduos, questões que têm que ver com a liberdade, lavando o governo as sua mãos como Pilatos. Em razão disso, decide abandonar os desempregados à sua sorte, que se traduz na lotaria do darwinismo social cujo espelho é este capitalismo selvagem de que são vítimas. A par do ferrete da “exclusão social”, mácula sem redenção num mundo que se guia pelos imperativos do consumo – em que o valor da existência mede-se pelo valor do consumo – ganha o desempregado um ócio forçado. Esse ócio – como afirmou Eduardo Lourenço em O Esplendor do Caos -, filho mimado do esplendor liberal, que nos asseguraria a todos uma vida de permanente gozo virtual, de que a droga é a grosseira antecipação, não põe termo, como nas utopias, ao famoso “estado de necessidade”. É precisamente o contrário, a prisão perfeita onde ninguém nos encerra, feita unicamente da nossa diferença com aquela “humanidade-outra”, que detém – ou pensa deter – o poder de separar os que têm direito “a trabalhar” dos que serão – ou já são – condenados ao gozo demente do ócio obrigatório. Só que esta nova espécie de ócio se chama desemprego.”  
Passemos à segunda notícia que deu conta de um facto curioso ocorrido no santuário de Fátima, no sábado passado. Nestes tempos de crise, as velas vendidas e queimadas na tradicional procissão nocturna ascendeu, em peso bruto, às dezanove toneladas, oito das quais até à hora de almoço, quando em anos anteriores na parte da manhã eram derretidas apenas duas toneladas. Não se tratando de um argumento de peso para fazer valer a ideia de um acréscimo de fiéis ao catolicismo, desmentido por estudos e relatórios que os media a propósito referiram, somente pode significar outra coisa bem mais prosaica, a saber, que o povo entregou nas mãos de Nossa Senhora de Fátima, isto é, à sua fé na providência divina, a solução dos seus problemas terrenos, ao invés de a entregar nas mãos daqueles em quem um dia terá delegado a esperança num amanhã mais risonho. Substituir assim os políticos por Deus revela, inequivocamente, o sentido da descrença generalizada na representatividade política.       
Destas duas notícias resulta uma espécie de fenomenologia da crise, que nos mostra, entre outras coisas, que está em causa o problema da representação democrática. Quando os políticos, em acções e palavras, se apartam do povo, e quando simultaneamente os cidadãos não se reconhecem quer nas decisões quer nos discursos políticos, ou não se veem representados pelos políticos que elegeram, o que vai dar ao mesmo, é o próprio paradigma da democracia representativa que está em crise. As consequências estão à vista. Em Portugal, o afluxo de gente ao Santuário de Fátima, impelida por promessas em que apenas a sua fé lhes confere algum crédito; noutros países da Europa, a emergência de partidos políticos de configuração neonazi, que rompem com a matriz democrática decadente que lhes deu alento e razão de existir. Por que caminhos nos conduzirão amanhã os nossos passos hesitantes?

Publicado originalmente em http://jerusalem-ljj.blogspot.pt/

domingo, abril 15, 2012

Das palavras e das coisas

É costume associarmos a palavra fundamentalismo a formas de governo teocráticas e a países em que predomina uma visão conservadora das crenças religiosas, assim como à tendência para orientar os crentes no sentido de um regresso aos dogmas considerados como fundamentais ou originários. O fundamentalismo islâmico é, hoje por hoje, o exemplo que nos vem imediatamente à cabeça. No entanto, atitudes fundamentalistas não são exclusivas de assuntos religiosos nem de governos ditos autocráticos e iliberais. Mesmos em países de governos classificados como democráticos e liberais, como é o caso do governo português, os tiques fundamentalistas podem tornar-se evidentes. 
O primeiro deles é sem dúvida o fundamentalismo do mercado. Impera no governo a crença de que os mercados – e não a política – constituem a solução para todos os nossos males. O regresso aos mercados transformou-se na ideia de paraíso que nos salvará do inferno em que, por culpa própria, entretanto vivemos. Inevitavelmente, teremos de passar pelo purgatório de um programa de empobrecimento (in)voluntário – em curso - e, paralelamente, por um processo de emagrecimento do estado. Tudo isto à revelia da vontade popular. Apenas porque a Troika, a mando dos mercados, dixit. Depois disso, os mercados farão o seu trabalho. Virão charters de investidores estrangeiros, que produzirão tanta riqueza que sobejará dos seus bolsos e escorrerá até aos dos mais pobres.
Outro tique fundamentalista pode ser constatado nas últimas medidas que o ministro da saúde quer impor aos cidadãos que sofrem da doença do tabagismo. Trata-se simplesmente de proibir aos fumadores o seu vício, no espaço privado dos seus automóveis, quando acompanhados de crianças. O problema não está na possibilidade de fiscalizar ou não o interdito. Está, em primeiro lugar, no abuso do poder do estado face à liberdade do indivíduo; em segundo lugar, encontra-se na sobredeterminação do privado pelo público; por último, na imposição ao cidadão comum da ideia de bem, não o deixando escolher o que para si é uma “vida boa”. Tudo isto poderia ser compreensível, não se desse o caso de estarmos perante um governo que se diz liberal ao mesmo tempo que pretende legislar contra os princípios basilares do liberalismo.                    
O cerne do fundamentalismo assenta numa crença que, à força da sua repetição, tem pretensões de exclusividade à posse da verdade. Essa crença assume, no mundo ocidental e nos últimos trinta anos, uma feição económica. Oriunda das escolas económicas austríaca e de Chicago (cujos gurus foram Friedrich Hayek Milton Friedman) corre mundo, globaliza-se e faz doutrina. Ela exprime-me hoje na mais perigosa de todas as ideias, em termos políticos: não há alternativa!

Publicado originalmente no blog Jerusalém

terça-feira, março 06, 2012

Da Europa ou uma certa maneira de ser cultura

A Europa vive hoje tempos sombrios. Não tão sombrios como os que viveu durante as duas guerras mundiais, ou outros em que foi palco de sangrentos conflitos por motivos territoriais e ideológicos – políticos, económicos ou religiosos. No entanto, depois da segunda guerra mundial, a Europa, qual fénix, renasceu das suas próprias cinzas. Ao longo de meia dúzia de décadas, parecia fadada para concretizar a utopia comunitária que lança as suas raízes no “projecto da paz perpétua” kantiano e na profecia dos Estados Unidos da Europa, de Victor Hugo. Após o período que medeia entre Março de 1957 (Tratado de Roma) e Dezembro de 2007 (Tratado de Lisboa), a Europa parece ter entrado numa espiral de entropia que a conduzirá inevitavelmente ao fracasso e fim de um sonho. Terminará o sonho em pesadelo? Quais os contornos do que se avizinha? Não o sabemos. Mas podem muito bem coincidir com os do fim de uma “ideia da Europa”, a qual, no dizer de Husserl, “designa a unidade de uma vida espiritual e uma actividade criativa”, que se identifica com a Filosofia.
A tese de Husserl, no seu texto A Filosofia e a Crise do Homem Europeu (1935), é conhecida. De tão conhecida, talvez já tenha entrado no esquecimento. E como o esquecimento das raízes pode ser perigoso! Revisitá-la pode, pois, ser uma boa terapia. Não será deste tipo de terapias que os europeus hoje mais precisam?
Segundo Husserl, a Europa origina-se em solo grego, nos séculos VII e VI a.C., e tem como protagonistas os filósofos que ousaram empreender a aventura espiritual do pensamento crítico, conduzindo-os por veredas nunca antes percorridas, as veredas do questionamento da tradição e das verdades aceites como óbvias, em virtude de uma atitude natural. A mudança de atitude em que assenta o filosofar (epoché transcendental) traduz-se numa “cultura de ideias” cujos vectores principais são a autonomia e a universalidade que configuram a “forma espiritual da Europa”. A crise desta forma de ser cultura radica no empobrecimento da essência da racionalidade europeia – originariamente filosófica – que se alienou numa racionalidade unilateral inerente ao modelo hegemónico das ciências (naturalismo e objectivismo), inscrito no projecto da modernidade. Esta crise tem apenas duas saídas; ou a decadência, que significa o triunfo do irracionalismo e da barbárie (o sono da razão já tinha criado o monstro Hitler); ou o heroísmo da razão que conduziria ao renascimento da Europa. Para que tal suceda é necessário ter a coragem de travar “um combate sem fim”. Conhecem-se os inimigos. No entanto, “o maior perigo da Europa é o grande cansaço”.
Seremos nós hoje capazes de vencer o cansaço e de lutar contra as reconfigurações do tal naturalismo e objectivismo de que falava Husserl? Que rostos novos apresentam nos dias de hoje? Estaremos à altura de, parafraseando Eduardo Lourenço, proceder à “invenção de um caminho e de uma saída que ninguém nos deu nem pode descobrir em vez de nós”? (Da Europa como Cultura, 1989) Seja como for, nunca será demais ouvir, a propósito, as palavras sensatas de George Steiner: “É entre os filhos frequentemente cansados, divididos e confundidos de Atenas e de Jerusalém que poderíamos regressar à convicção de que ‘a vida não reflectida’ não é efectivamente digna de ser vivida.” (A Ideia da Europa, 2004) Vale a pena terminar com outra questão: não conduziria o fim da Europa ao fim da Filosofia ou, evocando novamente Eduardo Lourenço, ao fim de “uma certa maneira de ser cultura”?

Publicado originalmente no blog Jerusalém

domingo, dezembro 04, 2011

Da democracia e da crítica que Platão lhe moveu

Recentemente, Grécia e Itália foram palco de uma encenação política que levou muita gente (eu incluído) a proclamar, com veemente indignação, aqui d’el rei que se tratava de uma tragédia à moda antiga, digna de um Ésquilo ou de Lívio Andronico. Em questão estava a substituição do primeiro-ministro Papandreu e do seu homónimo Berlusconi, eleitos por sufrágio popular, por Papademos e Monti, ambos tecnocratas de ofício e eurocratas convictos. A tragédia tinha um título – O crepúsculo da democracia.
            Porque a emoção é inimiga da reflexão, é proveitoso não nos deixarmos manipular pelo efeito comovente dos discursos (pathos) e, serenamente, sopesarmos os argumentos e decidirmo-nos por aqueles cuja força nos convença por maioria de razão.
            Foi Platão quem primeiro se debruçou sobre o assunto da melhor forma de governar. Curiosamente, da sua crítica à democracia podemos extrair o filão argumentativo que suporta a decisão de substituir políticos eleitos democraticamente por tecnocratas. Resumidamente, a argumentação platónica traduz-se no seguinte: se estivermos doentes e pretendermos curar-nos, confiamos no médico e não no voto da populaça a escolha do remédio eficaz; a ninguém lembraria confiar à assembleia de passageiros de um navio a arte de navegar em mar alto, tendo ali à mão a competência do comandante para impedir o naufrágio iminente; analogamente, só a cegueira mental justifica que entreguemos a uma turba de palradores ignorantes as decisões políticas. Por consequência, o poder de guiar a nau do estado deve ser dado àqueles que detêm o saber técnico para o efeito. Aqui deparamo-nos com o significado da palavra tecnocratas.
            À distância de vinte e quatro séculos, podemos ser tentados a subtrair créditos ao argumento de Platão, a desmerecê-lo mesmo, em razão das inclinações do filósofo por um género de tirania esclarecida, hoje por hoje desconsiderada à luz da mundividência ocidental. No entanto, os méritos da democracia, em tempos de incerteza e de angústia colectivas, correm o risco de ser depreciados por populações ansiosas à espera de um homem providencial e de retórica eficaz.
Se pretendemos acautelar o futuro da democracia não basta cantar loas às suas virtudes inquestionáveis, ou, como afirma Fareed Zakaria “não é felicitando-nos por viver em democracia que resolvemos os nossos problemas.” (O Futuro da liberdade, Gradiva). É necessário levar a sério o argumento de Platão e darmo-nos ao trabalho de desconstruir os seus fundamentos. E porque não aproveitá-lo para refundar os alicerces da democracia? É esse o objectivo do reputado jornalista e editor da Newsweek International, ex-professor de filosofia política em Harvard. “Actualmente o que temos necessidade em política, é de menos democracia, não de mais. Com isto não quero dizer que devemos apoiar autocratas ou ditadores, mas antes devemos interrogar-nos por que razão algumas instituições (…) funcionam mal.” Defende Zakaria que a solução para a uma democracia disfuncional é dotá-la de mecanismos de delegação, que permite que determinadas decisões não fiquem reféns de uma desregulação democrática, que é o que acontece quando os políticos decidem em função de interesses corporativos, sendo permeáveis ao nepotismo, aos favorecimentos, aos lobbies e à pressão eleitoralista. “O maior perigo de uma democracia sem entraves e disfuncional é que ela desacredite o sistema democrático em si, projectando uma sombra sobre toda e qualquer governação popular.” Delegar decisões e autoridade a instituições de reconhecida competência, sempre sob o controlo do Parlamento, é uma solução que retira ao argumento de Platão a dose de persuasão que, em tempos de crise democrática, lhe pode ser atribuída.     
              Afirmou um dia John Dewey: “O remédio para os males da democracia, é mais democracia”. Ao que me atrevo a acrescentar: sobretudo melhor democracia.    

Texto publicado originalmente no blog Jerusalém.

domingo, novembro 20, 2011

Impressões de leitura - Tony Judt

Tony Judt morreu o ano passado, vítima de uma doença degenerativa – esclerose lateral amiotrópica. A doença, diagnosticada em 2008, não lhe deixava margens para prognósticos esperançosos. A curto prazo, ficaria reduzido a um estado de mobilidade mínima do pescoço para cima. Daí para baixo, sem ajuda de terceiros, a imobilidade seria absoluta. Fisicamente prisioneiro de um corpo inabilitado, restar-lhe-ia uma mente livre para reflectir sobre acontecimentos e situações que a memória armazenou e lhos devolveria então, na penumbra nocturna, nítidos e em sequências narrativas concluídas. “Já doente há uns meses, percebi que, durante a noite, escrevia histórias completas durante a noite.” (O chalet da memória) Foi já nesse estado neurovegetativo avançado que escreveu dois belos livros: Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos e O chalet da memória, ambos publicados em 2010 (em Abril e Outubro de 2011 em língua portuguesa, pelas edições 70). São livros diferentes, arquitectados a partir de distintos pontos de vista. Mais intimista este, aquele mais didáctico. Percebe-se, ao lê-los, que o propósito de um e de outro divergem. Enquanto o primeiro tem uma natureza ensaística, o segundo reveste-se de um carácter testemunhal. No entanto, o pano de fundo permanece o mesmo: as mudanças sociais e políticas que ocorreram no mundo ocidental ao longo do século XX.
É sobre os acontecimentos deste último século que interessa reflectir, antes que nos deixemos conduzir pelos perigosos caminhos da “servidão voluntária” que nos querem impor os novos arautos da ideologia da inevitabilidade. “Acima de tudo, a servidão em que uma ideologia mantém a sua gente mede-se melhor pela sua incapacidade colectiva para imaginar alternativas. Sabemos muito bem que a fé ilimitada nos mercados desregulados mata: a aplicação estrita do que até há pouco tempo, em países em desenvolvimento vulneráveis, se chamava ‘o consenso de Washington – que punha a sua tónica numa política fiscal rigorosa, privatizações, tarifas baixas e desregulamentação – destruiu milhões de meios de subsistência. Entretanto, os ‘termos comerciais’ rígidos em que estes remédios são disponibilizados reduziram drasticamente a esperança de vida em muitos locais. Mas, na expressão letal de Margaret Thatcher, ‘não há alternativa’.” (O chalet da memória)
Se há característica predominante capaz de definir significativamente esta nossa época de modernidade globalizada, é o esquecimento do passado, logo abandonado e esquecido. Para além deste esquecimento, somos prisioneiros de um presente tecido com os fios da frágil imediatez e de um futuro incerto que nos devolve o medo de existir. A conjugação destes factores coloca-nos perante a reedição de cenários que a perda de memória potencia. A descrença na democracia como eficaz sistema de liberdade política e de justiça social, e o medo perante a incerteza do amanhã, alicerçados na ideologia economicista que proclama como horizonte único o dogma da inevitabilidade, abrem espaço ao aparecimento regimes políticos musculados e de figuras autoritárias e tutelares dos totalitarismos.
Só a memória do passado nos pode preservar do erro simples que consiste em acreditar em formulações do tipo: “não há alternativa”. A atitude profiláctica certa é a desconfiança. “Deveríamos desconfiar de proclamações do género. A ‘globalização’ é uma actualização de uma intensa fé modernista na tecnologia e na gestão racional que marcaram os entusiasmos dos decénios do pós-guerra. Como estes, ela exclui implicitamente a política como um palco de escolha: os sistemas de relações económicas são, como costumavam dizer os fisiocratas do séc. XVIII, determinados pela natureza. Logo que tenham sido identificados e correctamente entendidos, resta-nos apenas viver segundo as suas leis.” (Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos) Sem memória não passamos de “mentes cativas” e de sujeitos de uma “servidão voluntária”. Acreditamos ser esta a única alternativa?


Texto publicado originalmente no blog Jerusalém.

Portugal ou o canil da Europa

Com a certeza de que quem nos governa não mora neste recanto de angústias a que chamamos Portugal, li a entrevista que Poul Thomsen deu ao Expresso (19/11/2011). Todas as minhas suspeitas se viram confirmadas, preto no branco. Mas também tive surpresas. A ilustre personagem, que tem por missão resgatar a economia portuguesa do ciclo vicioso em que caiu (espiral de deficit e desequilíbrio das contas) e conduzir-nos para o caminho da virtude, mostra ter tantas certezas quanto o cidadão comum depois de ter feito exames médicos para saber qual a estirpe do cancro que lhe foi diagnosticado: “Depende da economia”, “Penso que é possível”, “Vamos ver como a economia responde”, “Se voltarmos e virmos a economia a afundar-se mais do que o previsto (…) então poderemos reconsiderar”, “Acredito que é possível se as reformas forem feitas”. Para navegar neste mar de incertezas era preciso mais do que uma bússola avariada.
A propósito da anunciada austeridade e da percentagem expectável da queda da economia para 2012 (3, 4, 5 por cento?) a resposta do senhor FMI, como alguma comunicação social gosta de lhe chamar, merece pontificar nos anais dessa ciência a que chamamos economia: “Esperemos não chegar a esse ponto. Queremos evitar ser um cão a correr atrás da própria cauda, no sentido em que uma economia mais fraca precisa de mais austeridade, o que por sua vez agrava a recessão, etc.” A imagem não podia ser mais certeira. Não é preciso ser-se um expert em psicologia canina para saber que esse comportamento obsessivo resulta de acumulação não de capital mas de stress, frustração e ausência de estímulos causados pela falta de liberdade. Temo que em breve Portugal se venha a transformar-se num canil para animais doentes por falta desse estímulo apelidado liberdade. Talvez este país tenha futuro como canil da Europa. 




Texto publicado originalmente no blog Jerusalém.